“Tudo
está relacionado ao corpo, como se ele tivesse sido redescoberto, depois de ter
sido esquecido por muito tempo; linguagem do corpo, consciência do corpo,
liberação do corpo, são senhas.” STAROBINSKI, The natural and literary history
of bodly sensation, p 353
Para construir um discurso
sobre o corpo, é preciso levar em conta o mundo que produzimos e habitamos. A humanidade vive em tempos de
tecnosfera. As radicais transformações pela quais está passando devido ao
desenvolvimento acelerado da tecnologia e ao surgimento de novos campos de
pesquisa _ como a Nanotecnologia, Neurociência, Manipulação Genética,
Tecnologia da Informação _ interferem radicalmente no sentido do que é
‘natural’, criando quase que uma nova natureza para o ser humano: o
transhumano. Esta esfera da Inteligência Artificial, com uma rapidez
surpreendente, traz cada vez mais apuradas tecnologias convergentes, que
interconectam tudo e todos através da rede (internet) e de sistemas ubíquos
(internet das coisas). Um sistema de intercomunicação artificial vai se
estabelecendo de forma cada vez mais aprimorada em todo o planeta. A surgente
realidade do ciborgue põe em xeque a ontologia do humano, nos instigando ainda
mais insistentemente a nos perguntarmos quem somos e para onde vamos?
Na Antropologia do Ciborgue(1991), Donna Haraway analisa o surgimento
das inúmeras ciber-tecnologias _ restauradoras (permitem restaurar funções e
substituir órgãos e membros perdidos); normalizadoras (retornam as criaturas a
uma indiferente normalidade);
reconfiguradoras (criam criaturas pós-humanas); melhoradoras (criam
criaturas melhoradas em relação aos padrões humanos) _ que, afetando os dois
tipos de ‘seres’ (humanos e trans-humanos), contribuem para confundir suas
respectivas ontologias:
“Implantes,
transplantes, enxertos, próteses. Serem portadores de órgãos ‘artificiais’.
Seres geneticamente modificados. Anabolisantes, vacinas, psicofármacos. Estados
‘artificialmente’ induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a
percepção, a imaginação, a tesão. Superatletas; Supermodelos. Superguerreiros.
Clones. Seres ‘artificiais’ que superam as limitadas qualidades (pelo menos as
conhecidas) e as evidentes fragilidades dos humanos...Biotecnologias.
Realidades Virtuais...Bit e Bytes que circulam indistintamente entre corpos
humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos
humano-elétricos. (TOMAZ,Tadeu, pag 12)
Esta conjunção entre o
humano e a máquina também se revela num nível mais abstrato, “mais alto”,
traduzindo-se numa grande confusão entre ciência e política, entre tecnologia e
sociedade, entre natureza e cultura. Não existe nada que seja “puro” neste
total e inevitável embaraço, que só um entendimento a partir das teorias da
complexidade pode tentar decifrar.
Aquilo que caracteriza a
máquina nos faz perguntar aquilo que caracteriza o humano. De que forma o ser humano
está utilizando seu poder de criar que lhe é inato? Qual poder reside no
pensamento humano? Como o desenvolvimento da Física Quântica contribui para o
melhor entendimento de quem somos em essência e de como efetivamente suportamos
o impacto do mundo em que estamos submersos? O que é o corpo, o que buscar
quando o colocamos como objeto de estudo? Como a Filosofia através da
apreciação do corpo, reflete sobre o ser no mundo? E por vias da semiótica como
pensar o corpo _ dispositivo que opera de modo complexo _ como dispositivo em
relação à informação visível e invisível? E o corpo cibernético neste processo
de transformações vertiginosas e continuas como novo estatuto do corpo humano?
São questões presentes na
tecnosfera como fruto de sua crescente ramificação a partir de extensões
tecnológicas e replicações resultantes da decifração do genoma.
A cibercultura traz com ela
transformação acelerada, plugada, abrangente, que reconfigura o espaço, o
tempo, o ritmo e caracteriza uma era de construção e desconstrução, levantando
pontos de interrogação nos mais variados ambientes e nas relações de interação
entre ferramentas tecnológicas, cultura e sociedade.
O
ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos
ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como sugeridos,
aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria constituído, então, de
unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas,
inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua
passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativamente aos quais os
indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários.(Haraway, 2009)
Podemos nos valer
do estudo apresentado por. Graziela Andrade (4) que traz uma classificação realizada por Santaella, em Corpo e Comunicação (2004), estabelecendo
sete classes de corpos, que considera mais representativas, e que podem ser
tomadas como as tendências de evolução para este tema dos ciborgues, sempre em
processo de transformação:
O corpo remodelado
Refere-se às manipulações da superfície do corpo para
fins estéticos, é a construção do corpo através de técnicas de aprimoramento
físico, que vão desde ginásticas, musculação, até os implantes e cirurgias
plásticas. Remete ao corpo enquanto mercadoria, construído, desenhado e
empacotado conforme padrões.
O corpo protético
Este é o corpo corrigido e expandido por próteses que têm
a função de amplificar ou substituir funções orgânicas. O corpo é cyborg por
sua característica híbrida: lentes corretivas e próteses dentárias,
marca-passos, órgãos artificiais e implantes de chips. Diferente do corpo
remodelado, o protético visa alterações no interior do corpo humano.
O corpo esquadrinhado
É aquele revirado pelas máquinas médicas em busca de
diagnósticos cada vez mais precisos. Tecnologias que perscrutam intimamente o
corpo humano e transformam-no em imagens que nos tragam informações. São as
tomografias, ressonâncias magnéticas, angiografias, entre várias outras.
O corpo plugado
Diz-se dos usuários que se movem no ciberespaço através
de computadores, aos quais seus corpos estariam plugados, para a entrada e
saída de fluxos de informação. Haveria níveis diferentes de imersão, de acordo
com a capacidade dos sistemas técnicos em cativar os sentidos do usuário e
bloquear os estímulos do mundo exterior. Quanto mais submergidos os sentidos,
mais imersos estariam os usuários. A autora apresenta as subclassificações por
nível de imersão:
• Imersão por conexão
É um nível mais superficial, o corpo se pluga através dos
sentidos e a mente navega via conexões hipermidiáticas, enquanto navegamos pela
Internet ou CD-ROM.
• Imersão através de avatares
É quando o internauta incorpora um avatar, criando uma
figura gráfica que o represente no ambiente virtual. Dessa forma, há uma
duplicação de identidade, que gera uma hesitação entre presença e ausência,
estar ou não. Portanto, caracteriza um nível um pouco maior de imersão.
• Imersão híbrida
Quando os mundos produzidos virtualmente se encontram com
os corpos humanos. É um tipo de imersão que vem sendo muito usado em
performances e danças, onde se criam ambientes imersivos, visualizações em 3D,
designs de interfaces, entre outros. Já é comum também em programas de televisão
que utilizam paisagens virtuais como cenário para os apresentadores, misturando
campos virtuais e presenciais.
• Telepresença
Exploram a ubiqüidade e a simultaneidade, relacionando-se
ao sentimento de estar presente em um lugar físico distante. O corpo do usuário
faz conexões com um sistema robótico que está distante e, através dele,
experimenta um lugar onde não está.
• Ambientes virtuais
Esse é o maior nível de imersão encontrado, dá-se em
ambientes virtuais com o uso de instrumentos sofisticados para entrada e saída
de informações. Os instrumentos de saída conectam a ordem sensorial ao mundo
exterior com o intuito de iludi-las, enquanto os de entrada monitoram os
movimentos corporais dos usuários e suas respostas.
O corpo simulado
A existência desse corpo ainda não é totalmente possível,
mas estudos e investimentos têm sido feitos nesse sentido. Trata-se de um corpo
completamente desencarnado, feito de algoritmos e tiras de números. Ele poderia
ser uma versão tridimensional de um corpo plugado transportado para outros
lugares, corpos numéricos imaginários sem, necessariamente, representarem um
corpo físico ou uma simulação, que mimetize apenas os processos dos organismos
vivos e não a aparência física de um corpo.
O corpo digitalizado
Reporta-se a um projeto específico, The visible human,
que promove a digitalização integral do corpo humano, a partir de dois
cadáveres doados a National Library of Medicine (NLM). Os corpos, um masculino
e outro feminino, passaram por diversos processos, que envolveram desde
ressonância magnética, até a sua extrema dissecação em lâminas fotografadas
digitalmente. Tal manipulação acabou por aniquilar a massa dos corpos, de tão
tênues que foram as secções. Dessa maneira, os corpos transformados em dígitos
podem ser desmontados, remontados e navegados pela ciência.
O corpo molecular
É o corpo manipulado pela engenharia genética, que chegou
ao conhecimento público a partir da divulgação das experiências do projeto
genoma. Essas polêmicas experiências vão desde os transgênicos, até a clonagem
de animais e seres humanos.
Num certo sentido, a
aventura descontrolada da tecno-ciência pode ser considerada na atualidade, o
maior problema da humanidade. Pois depende da civilização que hoje depende dela
(tecno-ciencia). Segundo Edgar Morin, “a crise da antroposfera e a crise da
biosfera remetem-se uma à outra, como se remetem uma à outra as crises do
passado, do presente, do futuro,” (MORIN,
2005 pg 94)
A conexão eletrônica é
apenas a parte visível de toda conexão cósmica a que estamos submetidos. Não é
por acaso a ligação de Teilhard de Chardin (5) (1881–1955) com o avanço das conexões
tecnológicas atuais e sua compreensão por McLuhan( 1911-1980) (6) e Pierre Levy (7) (1956-).
Embora tenha falecido em
1955, antes mesmo da difusão da televisão por todo mundo e quando os
computadores ainda eram paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas
e mega-empresas, Chardin percebeu que a tecnologia estava criando um “sistema
nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a
Terra”, uma “estupenda máquina pensante”. Teilhard de Chardin
escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização unificada
está começando”. Essa membrana inteiriça, a noosfera, era, naturalmente, a
‘rede inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia
global’.
(4) Nós em rede, informação, corpo e tecnologia . disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECID-7KAQ6D/nosemrede_grazielaandrade.pdf?sequence=1
acessado em outubro 2016
(5) Teilhard de Chardin,
estudioso da noosfera e criador do termo; ver item noosfera desta pesquisa.
(6) McLuhan foi
um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação
canadense. Conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser
inventada. Desenvolveu o conceito de
‘aldeia global’, como forma de explicar os efeitos da comunicação de massa
sobre a sociedade contemporânea, no mundo todo.
(7) Pierre Levy é um reconhecido pesquisador das tecnologias da
inteligência e investiga as interações entre informação e sociedade. Mestre em
História da Ciência e Ph.D. em Comunicação e Sociologia e Ciências da
Informação pela
Universidade de Sorbonne, é um dos mais importantes defensores do uso do
computador, em especial da internet, para a ampliação e a democratização do
conhecimento humano.
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