O CORPO
“...para
ocupar-se consigo mesmo, é preciso conhecer-se a si mesmo; para conhecer-se é
preciso olhar-se em um elemento que seja igual a si; é preciso olhar-se em um
elemento que seja o próprio princípio do
saber e do conhecimento; e este princípio do saber e do conhecimento é o
elemento divino. Portanto é preciso olhar-se no elemento divino para reconhecer-se:
é preciso conhecer o divino, para reconhecer a si mesmo.” (FOUCAULT, 2006, p
89)
Mas de que corpo estamos falando?
O corpo entra em cena como
determinante de nossa existência, a partir do qual se tece o sujeito por vias
de sua própria experiência no mundo.
Lela Queiroz, em seu livro Corpo, Mente, Percepção (2009) afirma
que o corpo _ entendido como mediação do sistema-mundo em tempo real e mente
encorpada _ diz respeito a todos os processos que exercem algum tipo de papel
na invenção do conhecimento, e colocam mente e corpo como processos
co-evolutivos.
Ao contrário do dualismo
cartesiano, corpo e mente não estão separados, mas, antes, formam uma unidade,
um todo indissolúvel. Existem entre eles vínculos íntimos. O corpo pode ser
considerado como nosso primeiro suporte de informação. Nosso ser e estar no
mundo – corpo – é permeado por uma
infinita teia de signos e linguagens. Portanto, é constituído dinamicamente
pelas mediações que estabelece através das trocas informacionais com o meio em
que se insere e com outros corpos, numa relação complexa e evolutiva. Ao mesmo
tempo em que nos apropriamos desta teia, nós também a construímos. O corpo em
seus sentidos, abre-se para si mesmo, para o outro e para o mundo, fazendo
notar que a interioridade só existe exposta à exterioridade, alertando que o
palpar e o ver demandam um ser palpado e outro visto. Corpo e mundo estão em
construção perpétua, na trama da reversibilidade, transitividade e
irredutibilidade de cada um dos sentidos que configuram o corpo sensível.
Às voltas com o enigma que
nomeamos corpo, estão saberes fracionados em disciplinas das mais variadas.
Descobertas recentes em estudos das ciências cognitivas sobre o complexo
cérebro-corpo-ambiente (DAMÁSIO, EDELMAN, LLINAS, THOMPSON) foram fundamentais
para novas investigações acerca do corpo. Um dos seus diferenciais de abordagem
nos estudos de percepção passa pela consideração do corpo como eixo principal
da cognição e de passar a entender percepção como ação (GIBSON, THELEN).
Merleau-Ponty (2006)
assegurava que, somente através dessa fenomenologia incorporada, voltada para
os modos de percepção, é que aprenderíamos a verdadeira filosofia, aquela que
nos permitiria rever o mundo, via corpo. Corpo cognoscente que, portanto, “é
iniciação ao mistério do mundo e da razão”.
Ainda segundo Merleau-Ponty
(2006):
“por vias da percepção o sujeito torna-se o lugar das coisas, a
percepção não ocorre primeiramente no mundo; não há um estímulo de fora que
ativa o corpo por dentro; não se sente por uma ação exterior ao corpo; a
categoria da causalidade não se aplica nesse sentido. O campo perceptivo é
sempre atual e denota uma superfície de contato ou um enraizamento no mundo, um
assalto constante à subjetividade, à lacuna que somos. O sujeito que percebe é
o mundo percebido, o corpo é um sensível-senciente, isto é, sente-se além de
sentir e ser sentido, é sensível para si mesmo – um visível que se vê vendo, um
tocante que se toca tocando, um móvel que se move movendo.”
Não somos um corpo objeto
como querem as ciências, somos um corpo habitado e animado pela consciência. Ao
mesmo tempo, não somos uma consciência cognitiva pura, visto que esta está
encarnada em um corpo. Não somos puro pensamento, porque somos corpo. Não somos
objetos, porque somos consciência. Nega-se ai, mais uma vez, qualquer separação
que pudesse haver entre corpo e consciência, tornando-se, portanto,
corpo-consciência.
Merleau-Ponty (2006) afirma
que o visível está prenhe de
invisibilidade, não sendo eles contrários ou comparáveis. São direito e
avesso, visível e invisível, sensível e senciente, como dois lados irredutíveis
de um só Ser.
Helena Katz, filósofa, pesquisadora, professora, crítica e palestrante nas
áreas de Comunicação e Artes, em seu estudo Do Que Fala o Corpo Hoje? publicado em Teologia e comunicação: corpo, palavra e interfaces cibernéticas
(2011), afirma a co-dependência entre corpo e ambiente, gerando a
impossibilidade de se pensar em um sem pensar no outro. Diz ela:
“A
cultura “carnifica-se” no corpo. O que está fora adentra, e as noções de dentro
e fora deixam de designar espaços não conexos para identificar situações
correlatas. As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por
elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, por está
transformado. Assim transformado continua suas trocas, que agora passam a ser
outras. O meio vai sendo modificado e o corpo também, em processos
co-evolutivos permanentes e inestancáveis e as noções de dentro e de fora ficam
desestabilizadas.”(KATZ, 2011)
Mas de que modo o entorno se
torna corpo? Diz Katz em seu estudo Por
uma compreensão do Contemporâneo (2008):
“O
corpo nunca existe em si mesmo, nem quando está nu. Corpo sempre é um estado
provisório da coleção de informações que o constitui como corpo. Esse estado
vincula-se aos acordos que vão sendo estabelecidos com o ambiente onde
vive.”(KATZ, 2008)
O corpo está inserido em um
contexto. Porém a noção de contexto também é variável. Contexto inclui
noosfera, sistema cognitivo (mente, pensamentos), mensagens que fluem
paralelamente, memória de mensagens prévias que foram processadas ou
experienciadas e, sem dúvida, antecipação de futuras mensagens que ainda serão
trazidas à ação, mas já existem como possibilidade. O contexto em que algo acontece nunca é passivo.
Katz afirma que o ambiente no qual toda mensagem é emitida, transmitida e
interpretada nunca é estático, mas sim contexto-sensitivo. Que trabalha em
correlação com o corpo, no tratamento do fluxo de informações permanente que os
comanda. Afirma ainda que o transito de trocas é tão intenso e frequente que
impede o uso do verbo “ter” e pede pelo verbo “estar”, pois o corpo é um
estado, apenas um estado dessa coleção de informações que vai mudando.
Capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas
habituais com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, as
informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são
transformadas em corpo. Trata-se do processo de embodiment(10): são as interações entre corpo e mundo.(THELEN, Ester).
Se vamos transformando o
mundo em corpo, há que atentar para e zelar pelo que vamos colocando no mundo,
pelas atitudes que tomamos e pelas que não tomamos, uma vez que ambas marcam
uma diferença nas transformações que estão sempre em curso.
A noosfera fala sobre uma
atmosfera de trocas permanentes de informações que se aproximam e se amplificam
por afinidade, reforçando-se e tendendo a borrar as próprias delimitações,
produzindo uma plasticidade de fronteiras não controlável. É um traço
evolutivo.
Katz diz que o homem esta
diretamente implicado naquilo que ele observa, uma vez que a matéria se
transporta no trânsito natureza – cultura – natureza _ cultura..... Não há
melhor lugar para deixar explicito o tipo de relacionamento existente entre natureza e cultura que o
corpo humano.
Nosso corpo é a porta de
entrada do conhecimento. Idéias e emoções estão codificadas como informação nos
memes (Dawkins, 1976) como replicadores
de informação cultural, análogo ao gene. Pensamento e expressão estão
misturados no movimento de um corpo que dança. Uma idéia (genótipo) se
cristaliza no corpo (fenótipo) por fazer dele seu fenótipo estendido.
“Uma
vez que os memes não vêm embrulhados por instruções para sua replicação, devem
depender do padrão do nosso cérebro para fazer isto por eles. Trata-se de um
estado de dependência que favorece o seu potencial proliferativo porque a
máquina do cérebro constrói e continuamente atualiza modelos mentais do mundo
para aumentar a assimilação e a implementação de memes e suas descendências.”
(Gabora, 1997,20)
O meme faz parte da
comunidade interpretativa que o fortalece ou o descarta conforme sucessivos
acordos de sobrevivência. Isso significa que, quando selecionado, seu uso o
torna recorrente, de tal modo que fica favorecido pela coletividade, e se
espalha rapidamente por contaminação. Quanto mais repetido for, mais se
acredita nele e mais aceito fica. A força de proliferação de uma idéia anda
junto com a sua redundância e sua promoção como verdade metafórica. Esta é a
atmosfera da noosfera, a atmosfera onde habitam e se replicam os memes.
Se conceitos estão
fisicamente codificados no cérebro, como memes, e enraizados no corpo como seus
fenótipos estendidos, nossos cérebros e corpos podem mudar _ memes são
evolutivos. Por ser uma caracteristica estética de características singulares
no trato do movimento, a dança pode contribuir no desvendamento dos
modos de ‘manifestar informações no corpo’.
(10) embodiment: incorporação, corporificação, encarnação.
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